segunda-feira, 7 de julho de 2014

TRIBUTÁRIO
Apelação. Ação anulatória. Incidência de IPTU. Imóvel com erosão. 1 - Fato gerador do IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse do bem imóvel. 2 - Erosão do imóvel na proporção de 100% que afastou a faculdade do apelante de usar, gozar e dispor do imóvel, de modo que os tributos a ele inerentes não podem ser cobrados. Recurso provido (TJSP - 14ª Câmara de Direito Público, Apelação nº 0003733-02.2009.8.26.0311, Junqueirópolis-SP, Rel. Des. Kenarik Boujikian, j. 22/5/2014, v.u.).
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação nº 0003733-02.2009.8.26.0311, da Comarca de Junqueirópolis, em que é apelante W. J., é apelado P. M. J.
Acordam, em 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Conheceram e deram provimento. v.u.”, de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos exmos. desembargadores Octavio Machado de Barros (presidente sem voto), Geraldo Xavier e João Alberto Pezarini.
São Paulo, 22 de maio de 2014
Kenarik Boujikian
Relatora
Relatório
Trata-se de apelação (fls. 111/115) interposta por W. J. contra sentença (fls. 104/107) que julgou improcedente ação anulatória de lançamento fiscal, condenando o autor ao pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios arbitrados em 10% do valor da causa.
Sustenta o apelante que a omissão do Poder Público na conservação da infraestrutura básica do terreno tributado acabou por retirar o seu valor econômico, estando o lote tomado pela erosão numa proporção de 100%. Salienta que o proprietário deve ter a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê--la, nos termos do art. 1.228 do CC, o que não acontece no presente caso. Requer, portanto, o reconhecimento da inexigibilidade do IPTU.
Não foram apresentadas contrarrazões (fls. 118v).
É o relatório.
Voto
A controvérsia em tela está jungida à questão da incidência de IPTU sobre o terreno descrito na inicial (nº 1 da quadra nº 208 do loteamento Jardim Paulista), localizado em área atingida pela erosão.
Nos termos do art. 32 do Código Tributário Nacional, o fato gerador do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana é a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, localizado na zona urbana do município. Por conseguinte, o contribuinte do IPTU é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio útil ou seu possuidor a qualquer título (art. 34, CTN).
Evidentemente, sem a presença dos elementos objetivos e subjetivos que a lei exige ao qualificar a hipótese de incidência, não se constitui a relação jurídico--tributária.
No caso dos autos, foi produzida prova pericial no sentido de que o lote em questão é tomado pela erosão na proporção de 100%, provocada pela falta de galerias de águas pluviais (fls. 84/86). Confira-se, a propósito, trecho do laudo pericial:
“Como a tubulação da galeria de águas pluviais não está concluída, ela parou justamente no lote em questão, a uma profundidade de 3,00 metros do nível da rua e, com isto, a erosão é justamente pela falta de continuidade desta galeria, que, a partir deste ponto, corre a céu aberto numa constante lâmina d’água. A galeria é formada por dois tubos de 1,80 metro de diâmetro. [...]
Justamente no local em questão, paralisou a galeria de águas pluviais, e, a partir deste ponto, ela corre a céu aberto. Nesta galeria é proibido por lei despejar esgoto sanitário (Decreto nº 12.342/1978 – Código Sanitário Estadual), mas em seu percurso existem ligações clandestinas, sendo difícil identificar quais residências usa [sic] deste artifício ilegal para lançamento de esgoto de sua residência, visto que toda a tubulação é enterrada. A erosão atinge 100% do lote em questão”.
Em se tratando de imóvel tomado pela erosão em 100%, o que se tem é o afastamento da faculdade de usar, gozar e dispor do imóvel, de modo que os tributos a ele inerentes não podem ser cobrados da apelada, sob pena de inominável injustiça.
Causada por culpa da municipalidade, a erosão descrita pelo laudo pericial gera limitação absoluta ao uso da terra, não podendo o apelante construir moradia, alugar ou vender o terreno; enfim, não lhe é permitido dar ao imóvel qualquer destinação econômica.
Ora, ofende os princípios da razoabilidade e proporcionalidade o Estado violar o direito de propriedade (mediante a não finalização das obras da galeria de águas pluviais) e, ao mesmo tempo, efetivar cobrança tributária sobre o imóvel, que se encontra esvaziado das faculdades inerentes ao domínio.
A propósito, vale destacar as lições de Aires F. Barreto acerca do conceito de propriedade:
“Em sentido jurídico, o vocábulo propriedade é significativo de poderes inerentes ao domínio. Conforme dispõe o art. 1.228 do Código Civil, o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Assim, o conceito de propriedade só pode ser extraído em razão dos direitos ou poderes que a integram, isto é, os emergentes das faculdades de uso, gozo, disposição das coisas, até os confins fixados para a coexistência do direito de propriedade dos demais indivíduos e das limitações de lei. Nesse sentido, propriedade reflete, de um lado, os direitos de uso, gozo e disposição de bens, conferidos ao titular da coisa; de outro, o de retomada de quem injustamente os possua” (Curso de Direito Tributário Municipal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 180).
Embora o imóvel disponha dos melhoramentos exigidos para a cobrança de IPTU, nos termos do art. 32, § 1º, do CTN, a existência de erosão em 100% de sua extensão obsta a exigência do tributo.
Isto posto, conheço e dou provimento ao recurso para o fim de anular o lançamento de IPTU referente ao exercício de 2009, bem como declarar a inexistência de relação jurídico-tributária enquanto perdurar a situação anteriormente descrita no imóvel (erosão em 100%), e inverto o ônus de sucumbência.
Kenarik Boujikian
Relatora
PROCESSO PENAL
Conflito negativo de jurisdição. Crime de estupro imputado ao irmão da vítima (art. 213 do CP). Aplicabilidade da Lei nº 11.340/2006. Caso concreto que noticia violência motivada no gênero ou decorrente de relação de subordinação ou vulnerabilidade da ofendida, a recomendar a incidência dos ditames protetivos da Lei Maria da Penha. Menoridade da ofendida à época dos fatos que, por si só, não afasta a fragilidade decorrente do gênero. Conflito julgado improcedente, com o reconhecimento da competência do juízo suscitante (TJSP - Câmara Especial, Conflito de Jurisdição nº 0093652-23.2013.8.26.0000-São Paulo-SP, Rel. Des. Cláudia Lúcia Fonseca Fanucchi, j. 19/8/2013, v.u.).
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Conflitos de Jurisdição nº 0093652--23.2013.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que é suscitante MM. juiz de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - Região Leste 2 do Foro Regional de São Miguel Paulista, é suscitado MM. juiz de Direito da 19ª Vara Criminal da Capital.
Acordam, em Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Julgaram improcedente o conflito de jurisdição, reconhecendo-se a competência do MM. Juiz de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Leste 2 do Foro Regional de São Miguel Paulista, ora suscitante. v.u.”, de conformidade com o voto da relatora, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos excelentíssimos desembargadores vice- -presidente (presidente) e presidente da Seção de Direito Criminal.
São Paulo, 19 de agosto de 2013
Cláudia Lúcia Fonseca Fanucchi
Relatora
Vistos...
Cuida-se de conflito negativo de jurisdição suscitado pelo meritíssimo Juízo de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Leste 2 do Foro Regional de São Miguel Paulista, por discordar da respeitável decisão do meritíssimo Juízo de Direito da 19ª Vara Criminal da Capital, ora suscitado, que determinou a redistribuição do feito sob o fundamento de que o crime noticiado nos autos foi “cometido contra mulher, dentro do contexto de violência doméstica familiar” (fls. 66).
O Juízo suscitante sustenta, em resumo, que “na hipótese descrita nos autos, o elemento identificador da fragilidade do sujeito passivo não reside em seu sexo, mas em sua idade (15 anos na época dos fatos), pois se tratava de menor sob o jugo do poder familiar”, concluindo que “não há relação de pressão, dominação ou ascendência baseada na condição de mulher da vítima, ressaltando-se que não foi o gênero da ofendida que a tornou vulnerável à conduta criminosa” (fls. 87/91).
Processado o incidente nos próprios autos da ação penal, manifestou-se a douta Procuradoria-Geral de Justiça pela competência do meritíssimo Juízo de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Leste 2 do Foro Regional de São Miguel Paulista (fls. 98/100).
É o relatório.
Voto
O conflito negativo de jurisdição resta configurado, porquanto ambos os Juízos consideram-se incompetentes para conhecer do fato delituoso, nos termos do disposto no art. 114, inciso I, do Código de Processo Penal.
A competência para conhecer e julgar a demanda é do Juízo suscitante.
Trata-se de denúncia formulada pelo Ministério Público em face de A. P., em razão da suposta prática do crime tipificado no art. 213 do CP, pois este teria, mediante ameaça exercida com o emprego de uma faca, constrangido à conjunção carnal, por duas vezes, sua “irmã de criação”, que à época dos fatos contava com 15 anos de idade (fls. 01d/05d).
A ação penal foi inicialmente distribuída ao Juízo da 19ª Vara Criminal da capital, que, todavia, tendo vislumbrado caso de violência perpetrada no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, declinou-se da competência e remeteu os autos ao Juízo especializado.
A controvérsia instaurada cinge-se, portanto, à incidência ou não da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha.
Cabe destacar, primeiramente, que a mencionada legislação contempla dois relevantes nortes: o objetivo, pelo qual se direciona a combater os fatos ocorridos no âmbito doméstico, familiar ou intrafamiliar; e o subjetivo, pelo qual se preocupa com a proteção da mulher, vítima de atos de violência praticados tanto por aquele com o qual tenha ou haja tido relação marital ou de afetividade, quanto por qualquer outra pessoa com quem ela conviva no âmbito doméstico e familiar.
Com efeito, o art. 5º do aludido diploma legal prevê que, para os efeitos de incidência da lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, independentemente da orientação sexual a envolver as relações pessoais enunciadas na norma.
Certo é que a violência versada na lei qualifica-se pela opressão ao gênero, situação que decorre sempre de uma condição de hipossuficiência e/ou vulnerabilidade da ofendida para com o ofensor, não bastando, pois, o fato de se tratar de vítima mulher no contexto de relação de parentesco entre as partes.
Desse modo, da interpretação sistemática da Lei nº 11.340/2006, mormente considerados os fins sociais a que ela se destina, conclui-se que a intenção do legislador foi amparar a mulher em situação de fragilidade, tanto diante do ofensor do sexo masculino quanto do feminino, em decorrência de qualquer relação íntima, com ou sem coabitação, em que sofra violência (lato sensu).
Portanto, deve sempre ser aferida, no caso concreto, a relação de vulnerabilidade, hipossuficiência, inferioridade física ou econômica existente entre agressor/agressora e vítima.
No caso em tela, o contexto fático delineado nos autos revela notícia de crime de estupro praticado, em tese, pelo irmão da vítima.
Respeitado o entendimento do Juízo suscitante, vislumbram-se na hipótese indícios de ato de violência motivado no gênero a ensejar maior proteção à ofendida, por meio da aplicação dos ditames da Lei nº 11.340/2006.
Sobreleva ressaltar que a menoridade da vítima na ocasião dos fatos, por si só, não implica a presunção de que o elemento identificador da vulnerabilidade do sujeito passivo não resida em seu sexo (feminino), mas em sua idade.
Tal entendimento revela-se temerário, na medida em que, considerando o mesmo contexto fático, a vítima maior de idade ou que contasse com pouca diferença de idade em relação ao agressor estaria potencialmente mais amparada.
Conforme precedente citado por Rogério Sanches da Cunha e Ronaldo Batista Pinto, “à mingua de qualquer exclusão constante do texto da lei, conclui-se que qualquer mulher está por ela tutelada, independente de idade, seja adulta, idosa ou, até mesmo, criança ou adolescente. Nestes últimos casos, haverá superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, que não parecem excluir as normas de proteção da Lei ‘Maria da Penha’ que, inclusive, complementam a abrangência de tutela. Bom que se lembre que a Lei ‘Maria da Penha’ não se restringe à violência doméstica, abrangendo, igualmente, a violência familiar, do que não estão livres, infelizmente, crianças, adolescentes e idosos” (in Violência Doméstica - Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo, Ed. RT, 4. ed., 2012, p. 52).
A conduta delitiva narrada na denúncia amolda-se às circunstâncias qualificadas no art. 5º da Lei Maria da Penha, pois o acusado, em tese, praticou o crime em face da sua irmã, causando-lhe sofrimento físico e psicológico, no âmbito da unidade doméstica e familiar, valendo-se da sua vulnerabilidade física e emocional decorrente do gênero.
Esta colenda Câmara Especial, em casos análogos, pronunciou-se nesse sentido: “Conflito de Jurisdição. Inquérito policial. Art. 147 do Código Penal. Delito pretensamente praticado pelo irmão da vítima. Problemas em relação à herança. Recrudescimento de situações conflituo-sas envolvendo ameaças e constrangimentos diversos à vítima e a todas que a cercam. Situação que justifica a necessidade de apreciação dos pedidos de proteção, específico na Lei Maria da Penha, pelo Ministério Público oficiante perante o juízo suscitante. Fatos que podem caracterizar violência doméstica no âmbito familiar. Incidência da Lei nº 11.340/2006. Conflito procedente. Competência do Juízo suscitante” (Conflito de Jurisdição nº 0187549-42.2012.8.26.0000, Rel. Des. Vice-Presidente, DJ de 3/12/2012).
“Conflito negativo. Boletim de ocorrência de maus-tratos. Notícia do histórico de eventual violência recorrente do irmão contra a irmã, esta menor de idade. Matéria que à primeira vista se insere nos termos do art. 5º da Lei Maria da Penha. Violência que supostamente ocorre na mesma unidade doméstica. Necessidade de salvaguardar eventual situação de vulnerabilidade. Inteligência do art. 41 da Lei Maria da Penha. Trâmite indevido no Jecrim. Conflito procedente. Competência do juízo suscitante” (Conflito de Jurisdição nº 0136621-87.2012.8.26.0000, Rel. Des. Presidente da Seção de Direito Criminal, DJ de 15/10/2012).
Nesse contexto, tratando-se de delito subsumido ao âmbito de incidência da Lei Maria da Penha, correta a redistribuição do feito ao juízo suscitante.
Ante o exposto, julgo improcedente o conflito de jurisdição, reconhecendo-se a competência do meritíssimo Juízo de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Região Leste 2 do Foro Regional de São Miguel Paulista, ora suscitante.

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