01/09/2015 - Cegueira inexistente de um deficiente visual – história e superação
Na
vida surgem fatos que mudam a trajetória e a escolha do novo caminho
depende, muitas vezes, da própria ‘vítima’. Foi assim que aconteceu com o
escrevente-técnico da Comarca de Presidente Epitácio, Paulo Ricardo
Jakibalis, o entrevistado deste mês do Projeto Jus_Social. Paulo, que
teve parte da infância feliz e saudável no Paraná, ficou órfão de mãe
vitimada por um câncer aos 33 anos. Seu pai (Jak), responsável pelo
sustento da casa e dos quatro filhos menores (2, 12, 13 e Paulo com 9
anos), casou-se e sua nova esposa possuía três crianças (6, 8 e 9 anos).
Era uma casa de duas pessoas que acabaram de se conhecer e com sete
filhos para criar...
Aos
14 anos, Paulo estudava em um Colégio Agrícola, em Ponta Grossa (PR), e
voltava para casa nos finais de semana. Logo seu pai foi transferido
para Monte Alto (SP) e, por consequência, somente em julho e nos finais
de ano voltava para visitar a família. Ao terminou o antigo 2º grau (em
1º lugar) voltou para a casa paterna e, nessa altura, com 19 anos,
arrumou emprego de auxiliar de escritório em uma transportadora. Vida
estabilizada, emprego, namorada e nenhuma grande preocupação. Meses
depois, colidiu com uma árvore e o rosto e os dois olhos foram afetados
pelos estilhaços de vidros do para-brisa do veículo que dirigia. Nova
mudança abrupta em sua vida, depois de vários especialistas, o
diagnóstico unânime: "a medicina atual nada mais pode fazer no seu
caso... a cegueira é irreversível!". O jovem ficou sem ação, não
conseguiu reagir, sentiu um vazio profundo.
No
ano seguinte ficou "sobrevivendo", segundo ele, sem nenhuma expectativa
ou objetivo. Não tinha planos, só vivia o presente, um dia após o outro
até o momento que Jak o levou ao perito do INSS para requerer a
aposentadoria por invalidez. Para sua surpresa, foi o início de seu
fortalecimento. O médico repreendeu duramente o pai dizendo que era a
hora de investir nele e não de querer aposentar um jovem de 21 anos. O
laudo foi concedido com a condição de ser provisória e que ele fosse
'desaposentado' assim que inserido novamente no mercado de trabalho.
Paulo começou a refletir que era preciso ter alguma atitude em relação a
si mesmo, parar de sentir autopiedade, voltar a 'viver' com autonomia e
independência, principalmente. Tempos depois, frequentou por um ano uma
escola especializada em reabilitar deficientes visuais em Campo Grande
(MS) e aprendeu a andar sozinho com o auxílio da bengala, reaprendeu a
ler e escrever (Braille) e aceitou e enfrentou sua condição de
deficiente visual. A partir daí traçou um plano de fazer uma faculdade e
escolheu o curso de Direito.
Mundo jurídico
– A faculdade recusou sua inscrição e o reitor tentou convencê-lo de
que a instituição não oferecia estrutura. Paulo rebatia dizendo que
dominava a escrita em Braille e datilografia e que possuía os materiais
necessários para acompanhar as aulas e realizar as provas. Como os
argumentos eram conflitantes de ambos os lados, o reitor convocou uma
reunião com outros dirigentes e, por fim, resolveu aceitar a inscrição
para o vestibular. A prova foi realizada em sala separada, acompanhado
de uma 'ledora' que falava o teor das questões. Ele anotava as respostas
em Braille e, no final, a funcionária colocava no gabarito. Prova de
redação, fez na máquina de escrever da faculdade e foi aprovado em 93ª
lugar de um total de 150 vagas e mais de 1.200 inscritos. Foi sua grande
segunda vitória!
Viajava de
segunda a sábado de ônibus escolar de Presidente Epitácio para
Presidente Prudente (93,1 km). Saía as 17h30 e voltava às 0h30. No
terceiro mês das aulas, seu pai foi transferido de cidade e Paulo
decidiu não acompanhá-lo. Apesar de contrariado, Jak concordou e Paulo
foi morar em um quarto na casa da irmã da então namorada, pagando
mensalmente a moradia e a alimentação com dinheiro enviado pelo pai. As
despesas pessoais eram pagas com o salário mínimo que recebia da
aposentadoria. Para estudar, prestava muita atenção nas explicações dos
professores e fazia as anotações com seu equipamento manual de escrita
em Braille. Já quando a matéria era escrita no quadro, tinha que ter a
ajuda de algum colega para ditar o que o professor escrevia. “Para
complementar os estudos, contava com a colaboração de colegas para
gravar em áudio os capítulos dos livros. Concluiu a faculdade em 1994,
sem ficar para exame em nenhuma matéria.” Foi homenageado pelos colegas
que deram seu nome à turma de formandos.
TJSP na sua vida
– No ano seguinte passou no exame da OAB e começou a estudar para
concurso público em busca de estabilidade e remuneração fixa. Prestou
dois concursos, um para advogado da Prefeitura de Epitácio e outro para
escrevente técnico do Tribunal de Justiça. Contudo, menos de um ano após
sua formatura, o pai parou de enviar o dinheiro da 'pensão'. Passados
dois meses sem pagar a moradia foi convidado a se retirar. Nessa hora,
lembrou-se de duas senhoras conhecidas de seu pai. Havia uma que morava
em uma casa grande e... Sozinha. Explicou a ela o seu problema e “ela,
gentilmente, permitiu que morasse em um quarto nos fundos da casa”.
Nesse meio tempo, ficou sabendo que havia passado nos dois concursos. A
nomeação ao cargo de advogado só veio mais de ano depois, em março de
1997, ocasião em que solicitou o cancelamento da aposentadoria e
recuperou grande parte da sua autoestima. Trabalhava na área em que se
formou e ganhava seu próprio salário. Não dependia mais do dinheiro do
pai. “Voltei a me sentir 'eu mesmo novamente'!, revela.
Paulo
comprou o primeiro computador e começou a mexer com auxílio do programa
gratuito leitor de tela e tudo que é digitado chamado 'Dosvox', sua
grande ferramenta para desenvolver as atividades com independência.
Trabalhou um ano na prefeitura e foi nomeado no TJSP. Alugou e mobiliou
uma casa e foi morar só: assim estaria totalmente realizado e
independente. Iniciou essa nova fase em fevereiro de 2000. Paulo Ricardo
conta que, a partir daí, tudo era alegria. Tinha liberdade para ouvir
música, ‘assistir’ a qualquer canal de televisão, podia receber pessoas
em casa, dormir e acordar tarde, ir ao banheiro de porta aberta (risos);
enfim, viver sem limitações ou imposições de ninguém. “A maior
limitação já estava em mim mesmo, na falta de visão, esta é a maior
prisão que poderia enfrentar na vida. Só eu posso enfrentá-la e
superá-la, diariamente, desde a hora que acordo até a hora de dormir,
adaptando-me às novas realidades e vencendo os obstáculos do dia a dia.”
Hoje,
com o computador e o Dosvox exerce de forma independente a atividade
forense. Para facilitar a acessibilidade, o Tribunal disponibilizou um
programa leitor de tela chamado 'Window Eyes', que acessa praticamente
100% do sistema SAJ que permite que digite e imprima as reclamações no
balcão do Juizado Especial Cível – cartório no qual trabalha – e ainda
permite pesquisa e emissão de certidões. Paulo Ricardo deixou o
corregedor-geral da Justiça, desembargador Hamilton Elliot Akel,
impressionado na visita que fez à comarca e já foi até convidado a
proferir palestras motivacionais pela Secretaria de Educação do
Município e Instituto Federal de cursos profissionalizantes. No final de
2014, trocou o antigo celular, com teclado físico, por um
exclusivamente de toque na tela porque a tecnologia de leitores de tela
em smartphones permite que use o aparelho com total autonomia e
independência e isso facilita seu dia a dia. Equipou-se telefone fixo
que fala o número de quem está ligando, aparelho que identifica quando a
lâmpada está acesa ou apagada e relógio de pulso falante. Preocupado
com o corpo, adquiriu uma balança de banheiro que “fala” o peso e, para
não perder o pique, montou uma pequena academia de musculação em um dos
quartos, onde treina três vezes por semana. “Agora, aqui estou,
trabalhando no fórum, morando sozinho com total independência, com um
filho de nove anos, que mora com a mãe e passa os finais de semana
comigo, e um ‘dalmalata', mistura de dálmata e vira-latas.” Hoje, “ao
lado de uma namorada maravilhosa chamada Kátia”, diz ele, a vida
prossegue enxergando através da cegueira.
Mensagem – “Perdi
os faróis, mas o motor continua a fazer o carro correr na estrada da
vida, sempre prestando atenção nas placas de sinalização.” Paulo Ricardo
encerra ressaltando Mário Quintana, em “A idade de ser feliz”.
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